Para quem não sabe, sou uma mestranda em História Social que estuda
futebol, mais especificamente a seleção brasileira de 1970 e 1994. Devo,
teoricamente, entregar minha dissertação até o dia 22 de fevereiro, por isso
estou num processo maluco para conseguir finalmente terminá-la. Isso significa
ler, ler, ler e ler mais um pouco. No meio das minhas leituras, encontrei um
texto do Roberto DaMatta, MUITO bom, que fala sobre os milagres do futebol.
Resolvi compartilhar aqui no blog, a minha versão do texto, o que provavelmente
irá aparecer na minha dissertação.
De acordo com Roberto DaMatta, muitas
vezes o futebol é considerado um divertimento cuja função seria a de desviar a
sociedade de suas tarefas mais nobres e urgentes. A elite e ao menos um brazilianist,
já decretaram que o futebol é o ópio do povo brasileiro, espécie de suor azedo
de um sistema social sem salvação.
Porém o autor afirma que nesse esporte,
também existe “arte, dignidade, genialidade, sorte e azar, deuses e demônios,
liberdade e predestinação, bandeiras, hinos e lágrimas”[1], e acima de tudo que, embora o
Brasil seja ruim em “um montão de coisas”, é muito bom de bola. Somos campeões
de futebol e isso já é o suficiente, afinal é melhor ser campeão de samba,
carnaval e futebol, do que de guerras e vendas de foguetes. DaMatta afirma que,
se o discurso “sério” diz que sofremos de analfabetismo, má distribuição de
renda e inflação, o futebol anuncia um contraste. É por ser um “prazer vazio”
que o futebol permite o resgate da sociedade.
Mario Vargas Llosa afirma que um livro
e uma peça de teatro transcenderiam essa emoção instantânea promovida pelo
futebol e DaMatta vai contra essa concepção, porque entende que nada seria mais
preenchido que uma atividade humana vazia. Todas as atividades humanas,
inclusive o futebol, não teria uma essência que seria cheia ou vazia de
consequências, mas dependeria da relação que estabelece com seus receptores num
dado momento e numa dada sociedade.
Dessa forma, o primeiro milagre do
futebol é ser o que queremos que ele seja. No Brasil e em todos os países
subdesenvolvidos, o futebol é um registro vivo das potencialidades da
sociedade. O futebol, para DaMatta, é também uma área onde se pode ter a
experiência da igualdade e do respeito às leis, o que não existe no mundo real.
Ele se coloca contra a ideia de futebol como “ópio do povo”
Porque se continuamos
a insistir que futebol é um instrumento de mistificação das massas ignaras que
deveriam estar indo ao teatro, lendo romances ou discutindo política, estaremos
apenas repetindo uma fórmula elitista e deixando de lado a possibilidade de
estudar as implicações do futebol na sociedade brasileira[2].
Por isso que, se decidimos descobrir o
que faz o futebol importante, tudo pode mudar. Se, tradicionalmente livros,
teatro e aulas foram os instrumentos básicos de reflexão crítica, nada impede
que a eles se junte o esporte bretão, que não tem nenhuma virtude em si mesmo,
como qualquer atividade humana, mas tem o potencial de ser um espelho nobre ou
mesquinho do sistema social. Para DaMatta, se podemos falar do futebol como
ópio, “temos que dele falar como um instrumento de resgate da cidadania e de
uma confiança em nós mesmos que nenhuma outra instituição chegou a dar ao país
na mesma proporção”[3]. Em nosso país, nem a Igreja,
nem o Estado, nem as ciências sociais, nem a literatura, nem a Universidade,
nem o sistema financeiro, nem a burguesia promoveram a confiança requerida na
construção de uma identidade nacional positiva e realmente aberta. Assim, foi o
futebol que permitiu uma visão mais positiva e generosa de nós mesmos, num
plano realmente nacional e popular.
O segundo milagre do futebol seria
então, esse resgate de nossa própria alma por meio de uma atividade que nos
traz confiança e permite que entremos no saboroso universo da vitória. E isso é
extremamente importante para o povo brasileiro que sofre diariamente, estando
muitas vezes sem esperanças de melhora. Tem sido através dessa experiência
futebolística que conseguimos tirar a pesada capa de uma confusão trágica que
sempre teve muita força entre nós: a de pensar que criticar é também destruir e
liquidar com qualquer assunto.
No Brasil, o poder é marcado pela
linguagem jurídica pomposa e ininteligível para a massa, os símbolos nacionais
são propriedade exclusiva do Estado e não são livremente transferidos para o
povo, tudo está separado e dividido entre a casa, onde se tem direitos, e a
rua, onde só se tem deveres. Assim, o futebol permitiria juntar tudo isso,
demonstrando que é realmente possível rimar de verdade cidadania com alegria.
De acordo com o autor, o milagre
promovido pelo futebol é algo que tem uma relação profunda com três fatores
básicos. O primeiro, é que há uma interação fundamental entre jogo, jogadores e
espectadores, que chamamos de torcida. Dessa forma, o público sabe ser atento e
sabe que, no universo do futebol, a sua participação pode ser decisiva para o
desenrolar de uma partida.
Há assim uma profunda integração entre
os jogadores, o público e também as regras universais que fazem com que o
futebol promova espetáculos importantes de justiça social. Pois, “se a União
Soviética tem poderio militar, nós temos o Éder; e se a Inglaterra tem o
porta-aviões Hércules, nós temos o Zico”[4]. Nenhum dos dois países pode
mudar as regras do jogo utilizando seu poderio político-militar. Então, quando
uma atividade realiza esse milagre, podemos viver concretamente a democracia no
seu sentido mais profundo.
Essa possibilidade de viver num mundo
civilizadamente governado por regras que todos respeitam (se não respeitam são
devidamente punidos) e que são soberanas é a grande experiência do futebol.
DaMatta afirma que
o futebol me mostra
que a derrota e a vitória são estados passageiros e não fatos substantivos.
Posso também perceber nesta troca de símbolos um gesto básico de conforto pela
igualdade de todos perante suas camisas e regras do jogo[5].
Saudações verde-amarelas ;*
[1] DAMATTA,
Roberto. Explorações: ensaios de sociologia interpretativa. 2 ed. – Rio de
Janeiro: Rocco, 2011. P. 88.